A
propósito de «Rhoma Acans» (Leonor Teles; 2012, 12 min)
Num texto luminoso o escritor
israelita Amos OZ defende que «nenhum homem e nenhuma mulher é uma ilha, mas cada um
de nós é uma península, com uma metade unida à terra firme e a outra a olhar para
o oceano», para concluir mais adiante: «A condição de península é a própria
condição humana.» O documentário de Leonor Teles poderá ser visto como uma
ilustração desta analogia geográfica.
Rhoma
Acans significa
olhos ciganos. Que olhos são estes
que nos vêem? Com que olhos os vemos? Com soberba, preconceito, olhar
estereotipado? Ou com abertura de espírito, procura de compreensão, compaixão
ontológica?
Alguém disse ser importante respeitar as tradições da
comunidade cigana. Problematizemos: é importante respeitar essas tradições
porque a diversidade é um valor a preservar e fomentar, é uma riqueza das
comunidades humanas, é uma fonte de saberes e de aprendizagens, é um
contraponto à voragem uniformizadora dominante. Mas, o que fazer quando essas
tradições são atentatórias da dignidade humana, violam claramente direitos
humanos universais, são repressoras da condição feminina? Devemos continuar a
respeitá-las em nome do seu carácter ancestral? Haverá boas razões para não o
fazer, e o próprio documentário nos mostra isso…
O documentário tem uma assumida natureza
autobiográfica. Entre outros dados, ficamos a saber que a realizadora Leonor
Teles é filha de um cigano e de uma não cigana, ou seja, o seu pai quebrou uma
tradição da comunidade cigana. Tocamos aqui no núcleo da tensão entre
determinismo e livre-arbítrio. Rompendo com o determinismo da tradição, o pai
de Leonor Teles abriu e alargou o campo da liberdade, o que terá permitido,
especulação nossa, que ela se afastasse da comunidade cigana e se tornasse
realizadora. Mas as raízes estão lá, o vínculo à terra firme não se quebrou, e
a Leonor vai à procura do que nela está latente, primeiro como narradora,
depois como entrevistadora, e por fim como personagem que aprende a dançar com
outras raparigas ciganas.
Assim, Leonor procura alguém que ela própria poderia
ter sido se fosse fruto de um casamento tradicional e educada no interior da
comunidade cigana. Essa pessoa é Joaquina, a protagonista do documentário. O
movimento de Leonor é do exterior para o interior da comunidade cigana.
Curiosamente, o movimento de Joaquina, ou melhor, o seu desejo, é o inverso,
pois ela acaba por dizer que quer sair do país e afastar-se da sua comunidade.
Nesta fricção entre um movimento centrípeto e um desejo centrífugo dá-se a
feliz centelha e encontro deste filme.
Joaquina é aquela que Leonor poderia ter sido. O
cinema (e a arte em geral) dá-nos a ver vidas que poderíamos ter sido, vidas
que gostaríamos de viver, pessoas que gostaríamos de ser, dá-nos a ver outros
mundos, e outras formas de ver o mundo, cria emoção, afecto, imaginação. Nessa medida, o cinema é ou pode ser um factor de emancipação.
4.11.2016
Pedro Santos Maia
4.11.2016
Pedro Santos Maia